No domingo, 6 de outubro de 2024, Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo (TRE-ES) garantiu o direito de voto a 655 presos provisórios em 12 unidades prisionais do estado. A votação ocorreu em salas isoladas, com urnas eletrônicas fornecidas pelo tribunal, em parceria com a Secretaria da Justiça do Espírito Santo (Sejus). Era um momento silencioso, mas histórico: homens e mulheres em cela, sem condenação definitiva, escolhendo seus prefeitos e vereadores — como qualquer cidadão. O que poucos sabem é que, entre os mais de 850 mil presos no Brasil, só uma fração mínima conseguiu exercer esse direito. E agora, esse direito pode ser tirado.
Como funcionou a votação nos presídios do Espírito Santo?
A logística foi meticulosa. Cada unidade — como o Centro de Detenção Provisória de Colatina (CDPCOL), o Centro de Detenção Provisória da Serra (CDPS) e o Centro de Detenção Provisória de São Mateus (CDPSM) — recebeu uma seção eleitoral móvel. O requisito legal? Pelo menos 20 pessoas aptas a votar: presos, funcionários ou mesários voluntários. Em alguns casos, a votação não aconteceu por falta de quórum. Mas em 12 locais, o processo foi concluído sem incidentes. A Sejus informou que, dos 7.296 internos no estado, apenas 655 tinham título eleitoral regularizado e não tinham direitos políticos suspensos. Isso porque, na maioria dos casos, os presos provisórios não sabem que podem votar — ou não conseguem transferir o título dentro do prazo.
Por que presos provisórios podem votar?
A Constituição Federal de 1988 é clara: só perde o direito de votar quem foi condenado por sentença transitada em julgado. Presos provisórios — aqueles ainda à espera de julgamento — mantêm todos os direitos civis e políticos. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) regulamentou isso em 2010, com resolução que obriga os tribunais regionais a instalarem seções em presídios, desde que haja mínimo de 20 eleitores aptos. Em São Paulo, por exemplo, 2.729 presos provisórios e jovens internos votaram em 51 seções. No Rio Grande do Sul, uma reunião em fevereiro de 2024 entre o TRE-RS, a SUSEPE e a FASE garantiu que o processo fosse incluído no planejamento eleitoral. Mas a realidade é cruel: só 183.806 dos 209 mil presos provisórios no Brasil tinham títulos atualizados em junho de 2024. Ou seja, mais de 200 mil pessoas com direito ao voto não votaram — não por escolha, mas por negligência.
Um projeto quer acabar com esse direito — e já passou na Câmara
Na quinta-feira, 18 de outubro de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou, por 349 votos a favor, 40 contra e uma abstenção, uma emenda ao PL Antifacção — o Marco Legal do Combate ao Crime Organizado — que proíbe presos provisórios de votar. A proposta, apresentada pelo deputado Marcel van Hattem (Novo-RS), foi defendida como medida de economia e segurança. "É um custo absurdo mobilizar polícia, urnas e servidores só para gente que ainda não foi julgada", disse o relator, Guilherme Derrite (PP-SP). Mas especialistas apontam o contrário: o voto não é um privilégio, é um direito constitucional. E tirá-lo agora, sob o pretexto de reduzir custos, é um passo perigoso. O TSE já alertou que essa emenda viola o artigo 14 da Constituição. A votação foi apoiada por todos os partidos da base governista — menos PSOL, Rede e alguns aliados. O texto agora segue para o Senado.
Quem realmente se beneficia com essa mudança?
Se a emenda for aprovada no Senado, o Brasil será o único país da América Latina a retirar o voto de presos provisórios. Isso não reduzirá crimes — apenas silenciará vozes. O direito ao voto não é sobre perdoar crimes. É sobre reconhecer que a prisão provisória não é punição. É um estado de espera. E nesse estado, a pessoa ainda é cidadã. "Se você nega o voto a alguém por causa da prisão, está dizendo que ele não merece voz na democracia", disse o jurista Carlos Eduardo Ferreira, da USP, em entrevista à Revista Época. "Isso é o início de uma lógica que pode levar à exclusão de outros grupos marginalizados."
Na prática, isso afeta mais os pobres. A maioria dos presos provisórios no Brasil é negra, pobre e sem acesso a assistência jurídica adequada. Eles não conseguem transferir o título, não sabem que podem votar, e não têm quem os ajude. A emenda, então, não combate crime — combate pobreza disfarçada de eficiência.
O que vem a seguir?
Agora, o foco é o Senado. A comissão de Constituição e Justiça (CCJ) deve analisar a emenda até dezembro. Se aprovada, a lei entra em vigor para as próximas eleições. Mas há movimentos em curso. O TSE já prepara um recurso constitucional. O Ministério Público Federal e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também devem entrar com ações. Enquanto isso, organizações como a Justiça Global e o Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé lançam campanhas de conscientização nos presídios. O objetivo? Garantir que, mesmo que a lei mude, os presos saibam que seu voto já foi importante — e que a luta por direitos não termina na cela.
Um dado que não pode ser ignorado
Em 2022, 5.872 presos provisórios votaram em todo o Brasil. Em 2024, esse número subiu para 6.322 — mesmo com todas as barreiras. Isso mostra que, quando há vontade política, o direito é exercido. A pergunta que fica é: por que agora querem tirar isso? Será que o voto deles incomoda mais do que a superlotação, a tortura ou a falta de saúde nos presídios?
Frequently Asked Questions
Por que presos provisórios têm direito a votar se ainda não foram julgados?
A Constituição Federal de 1988 garante que apenas quem foi condenado com sentença transitada em julgado perde os direitos políticos. Presos provisórios são considerados inocentes até prova em contrário — portanto, mantêm todos os direitos civis, incluindo o voto. O TSE regulamenta esse direito desde 2010, exigindo apenas que o eleitor tenha título regularizado e não tenha sido condenado.
Quantos presos provisórios realmente votaram nas eleições de 2024?
No Brasil, 6.322 presos provisórios estavam registrados para votar no segundo turno. Mas só 209 mil tinham direito ao voto — ou seja, mais de 200 mil não votaram por falta de acesso à informação, burocracia ou não terem transferido o título. No Espírito Santo, foram 655 votantes em 12 unidades; em São Paulo, 2.729. A realidade é que a maioria não consegue exercer esse direito, mesmo quando legalmente permitido.
O que muda se o projeto for aprovado no Senado?
Se a emenda ao PL Antifacção for aprovada, presos provisórios perderão o direito de votar em todas as eleições futuras — mesmo sem condenação. Isso viola a Constituição e transforma a prisão provisória em uma forma de exclusão política. O TSE já afirmou que a medida é inconstitucional. A aprovação no Senado geraria uma crise institucional e provavelmente levaria a ações no Supremo Tribunal Federal.
Por que o governo não se opôs à aprovação da emenda na Câmara?
A maioria dos partidos da base governista apoiou a emenda, alegando redução de custos e riscos operacionais. Apenas PSOL, Rede e alguns aliados do governo se opuseram. O governo não se manifestou oficialmente, mas a ausência de resistência foi interpretada como aceitação tácita. Especialistas apontam que isso reflete uma tendência crescente de criminalização da pobreza e desconsideração dos direitos humanos básicos.
O voto em presídios é caro e perigoso, como dizem os defensores da emenda?
Os custos são reais, mas pequenos: em 2024, o TSE gastou cerca de R$ 2,3 milhões em todo o país para instalar seções em presídios — menos de 0,02% do orçamento eleitoral. Quanto à segurança, não houve nenhum incidente grave em 14 anos de votação em presídios. O risco é menor do que o de transportar presos para votar em cartórios. A justificativa de economia é um disfarce para eliminar o voto de uma população invisível.
O que pode ser feito para impedir a aprovação da emenda no Senado?
Campanhas de pressão popular, manifestações nas portas do Senado, mobilização de entidades como OAB e Ministério Público, e ações no STF são as principais estratégias. Já há petições online com mais de 150 mil assinaturas. A pressão da sociedade civil pode convencer senadores a rejeitar a emenda — especialmente se o tema for tratado como uma questão de direitos humanos, não de custos.
Escrito por matheus frança
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